Na última edição desta coluna, trouxemos um olhar sobre o nosso sistema de organização social e como nossas escolhas, de uma forma ou de outra, impactam no desenvolvimento de nossa nação.
Hoje, queremos começar a conversar sobre as desigualdades sociais. Este é um assunto amplo e complexo. Por isso, ele será trabalhado em novos escritos.
Alargando nossa tenda
A Campanha da Fraternidade deste ano foi muito feliz ao trazer o convite para alargar a tenda, ou seja, de trazer para dentro os que estão fora. Peçamos que o Espírito Santo nos ajude nesta tarefa e que Ele queira abrir nossos olhos, ouvidos e corações, para que, a cada novo dia, sejamos mais próximos ao nosso único Rei, Mestre e Senhor.
Jesus sempre teve seu olhar e ações voltados para os pobres. Todavia, é importante salientar que não devemos reduzir o sentido deste vocábulo e o colocar somente os desprovidos financeiramente sob os cuidados de Cristo. Outrossim, Ele se preocupava com todos que possuíam alguma mazela, mesmo que interior ou espiritual. Analisemos, por exemplo, o caso de Zaqueu (Lc 19,1-10). Ele era chefe dos cobradores de impostos. Um homem sem problemas financeiros, mas que foi libertado, protegido e resgatado pelo amor misericordioso de Jesus.
Precisamos ter a coragem de alterar a visão enraizada de que o dinheiro é ruim e demoníaco. Muito antes pelo contrário, só podemos ajudar os outros se tivermos o básico para nós, como nos lembra São João Crisóstomo. Neste sentido, o próprio Jesus, Verbo de Deus, nos ensina, que o problema não está em ter dinheiro, mas sim na sua relação com ele. No sermão da montanha, Ele ressalta que não se pode ter uma relação de servidão com nada, salvo com Deus. Ele deve ser o Senhor de nossas vidas (Mt 6,24). Outra parábola que Jesus nos conta é do homem insensato que construiu celeiros para guardar sua colheita e aproveitar a vida e no mesmo dia, Deus o chamaria para “acertar as contas” (Lc 12, 16-21).
Deus sonhou o homem e desejou que fossemos felizes, tivéssemos dignidade e vida plena. Portanto, o que Jesus nos adverte é que não tenhamos mais do que necessitamos e caso a generosidade de Deus em nossa vida esteja além de nossas necessidades, então que usemos esta “sobra” para o atendimento aos que não tem. Poderíamos citar várias passagens do 1º e do 2º Testamento para comprovar este entendimento. Contudo, sugeriríamos a leitura de Tb 4,5-21.
Um mundo de desigualdades
Sempre existiu e infelizmente sempre existirão desigualdades. Como o padre Júlio Lancelot confidenciou em entrevista ao Leandro Karnal, esta é uma luta perdida. Porém, como cristãos, seguidores de Jesus, é o que temos que fazer.
Neste contexto, o convite de Jesus e do Papa Francisco é para que convertamos a nossa inteligência e criatividade para encontrar caminhos de amenizar o sofrimento dos que menos tem e para otimizar a destruição do nosso planeta Terra. Prova dessa insensatez, que o homem está fazendo, é a agonia da natureza que se reflete em adversidades climáticas.
Todavia, apesar de já se ter estudos e comprovações científicas sobre os verdadeiros motivos que aumentam, ano após ano, este abismo social, hoje queremos lhe convidar a pensar sobre o conceito de meritocracia.
Desigualdades e meritocracia
Meritocracia é a união da palavra “mereo” (digno, merecedor), com o sufixo grego “kratos” (poder). Recordam-se que trouxemos que democracia significa o poder que emana do povo? Já a meritocracia é o alcance do poder através do merecimento.
Isso quer dizer que apenas os que se esforçam e são melhores, merecem ter as melhores oportunidades, vantagens, benefícios e escolhas.
Importante deixar muito claro que não estamos dizendo que as pessoas não devam se esforçar para obter o que desejam. Por exemplo, quantos, e inclua estes que escrevem, não fizeram faculdade e trabalharam ao mesmo tempo para pagar seus estudos? Dormiram 3 horas no máximo em finais de semestre, deixaram de almoçar para estudar, e no final, olharam para trás e viram que não foi fácil, mas que valeu a pena. Mas, será que teria que ser dessa forma e é assim para todos?
E se todas as famílias conseguissem os rendimentos necessários para ter qualidade de vida e não que apenas sobrevivessem ou se privassem de tudo o que pudessem para os filhos estudarem? E se todos os filhos pudessem apenas estudar, sem preocupações, não seria muito mais justo?
Este é um dos grandes problemas da meritocracia, qual seja, a “régua” não avalia o cenário em igualdade de condições, mas sim, apenas o resultado.
Para trazer mais um exemplo, vamos pensar na parábola dos talentos (Mt 25, 14-30). Apesar do proprietário dar quantidade de talentos diferentes, para um 5, para outro 2 e para o terceiro 1, as condições eram iguais, quais sejam, cuidem e multipliquem o meu talento. Por que o terceiro foi “castigado”? Por que ele não tinha condições? Não, porque ele não utilizou sua criatividade e inteligência para multiplicar o que de graça lhe foi dado.
Outro problema de acreditar e perpetuar um sistema baseado em meritocracia é que tiramos Deus da equação. Afinal, se o meu esforço e vontade forem os únicos impeditivos para que eu vença, então, diferente do que nos diz Santa Teresa de Ávila, eu me basto. Não preciso discernir, muito menos aceitar que Deus se utilize dos meus talentos (dom de Deus, através do Espírito Santo) para que Sua vontade seja feita. Pois, o que importa, a qualquer custo, sou eu e tudo o que me impede de vencer, deve ser extinto de meu caminho. A respeito disto lhe convido a ler o capítulo 3 da Laudato Si e o capítulo 2 da Fratelli Tutti.
Um case para refletirmos
Gostaríamos muito de que esta história fosse fictícia, mas infelizmente não é. Apenas vamos alterar os nomes dos envolvidos para proteger a identidade de cada um.
Carolina e Rafael foram colegas na faculdade de engenharia e trabalham para a construtora Bem-viver. O ano é 2020 e a COVID-19 está em seu ápice de transmissão. Todas as operações da empresa paralisam e por eles serem os mais jovens (formados há dois anos), foram demitidos, pois a empresa começou a enfrentar dificuldades financeiras.
Carolina vem de uma família de classe alta, com uma renda familiar mensal de R$ 100.000,00 (Cem Mil Reais). Já Rafael, é o primeiro filho que consegue ir para a faculdade, pois conseguiu uma bolsa. A renda da família é de R$ 6.000,00 (Seis Mil Reais) mensais, sendo que 40% (quarenta por cento) desse valor era referente ao salário do Rafael.
Carolina, conversou com a família e combinaram que assim que reabrissem os aeroportos, ela iria fazer uma especialização na Holanda e na França, para entender melhor as técnicas que eles estavam utilizando. Depois, iria pensar se abriria uma empresa ou voltava mais qualificada para o mercado, alçando voos maiores. Já Rafael, baixou o aplicativo em seu celular, pediu o carro emprestado para o pai e começou a trabalhar como motorista e entregador de delivery. Pois, como ele não receberia mais o salário, a família começaria a passar necessidades.
Agora, vamos ser bem sinceros e responder francamente as seguintes perguntas:
1. Quando Carolina e Rafael voltarem ao mercado de trabalho, qual deles irá conquistar a nova oportunidade?
2. Quem é mais merecedor?
3. Será que este modelo competitivo, voraz e extremamente desigual é justo e atende os anseios de Deus para a vida digna e plena de todos?
Caso você seja um(a) empresário(a), porque não pensa em mudar seu sistema de contratação para que o parâmetro seja uniforme. De forma alguma estamos dizendo que pessoas como a Carolina não sejam qualificadas. Mas, que a escolha seja baseada nas verdadeiras aptidões, experiências e competências e não simplesmente na meritocracia.
Busquemos ser a cada dia mais parecidos com o nosso Senhor e por mais que talvez não possamos fazer quase nada, que não concordemos com essa política social injusta e cruel e que “quebremos” essa corrente, que se forma a partir de uma cultura de descarte.
Fonte: Jocelito André e Valeska Salvador